Adoro cozinhar. Curioso é que, na minha infância
e adolescência, minha mãe jamais imaginaria que um dia eu dissesse isso. Nem
eu.
Mamãe cozinha bem e sempre cuidou de todas as
refeições da casa. Quando crianças, eu e minha irmã estávamos sempre por perto,
observando e ajudando em alguma coisa. Mais velhas um pouco, aprendemos a nos
virar cedo, mas aquele papel continuava a ser desempenhado por mamãe. Ajudá-la
não era muito fácil, porque autoritária e sistemática como é, as coisas ao seu
lado têm de ser do jeito que ela acha que devem acontecer. E pronto.
Minha irmã casou cedo e logo se tornou uma
doceira de mão cheia. Nos almoços em família, as sobremesas preparadas por ela
são sempre esperadas com ansiedade. E dificilmente elas se repetem, pois criar
e experimentar receitas é algo que ela ama!
Por minha vez, eu, já adulta, continuava no meu
“arroz com feijão”, deixando mamãe executar suas tarefas – o que deixava a nós
duas felizes: a ela, que não tinha nenhuma interferência em sua cozinha; a mim,
que permanecia desfrutando da comidinha da mamãe.
Saí de casa aos 26 anos para morar sozinha. Foi
MUITO bom! E, tendo uma cozinha só para mim (é preciso dizer que adoro espaços
que sejam só meus...), comecei a ensaiar na culinária, obviamente usando os
segredos aprendidos com a mamãe, nas observações de suas tarefas. E foi dando
certo!
Depois dos 30 anos, casada, já com dois filhos,
minha experiência se ampliou. Com tanto amor transbordando e os sentidos à flor
da pele, fui descobrindo os temperos, seus cheiros, seus gostos. Passei a fazer
combinações e misturas e a dar ainda mais valor à aparência, ao paladar e ao
aroma dos pratos.
Adoro cozinhar! E como é interessante essa
vivência... Pensar em algo para, mais do que alimentar a família, agradá-la.
Procurar por uma receita, exercitando também aqui meu lado “pesquisadora”.
Incentivar minha criatividade, ao fazer modificações próprias. Aguçar os
sentidos, durante o preparo da refeição. Despertar sensações, na hora de servir
à mesa. Que prazer imenso!
Tenho certeza de que tudo isso tem relação com
amor. Comer juntos é o que torna as pessoas companheiras, seja nos
relacionamentos amorosos, seja nos de amizade. E, principalmente, nos
relacionamentos familiares, se não se trata apenas de rotina, mas de ritual
entre os que estão juntos. Companheirismo.
Nas origens ibérico-castelhanas, a palavra companheiro
é composta de con + pañero, que é
alguém muito chegado, que come o pão conosco. Alguém que senta à mesa. E nós
não sentamos à mesa com qualquer um... Há de existir uma mínima cumplicidade e
um pouco de afeto.
Companheiro é aquele que doa algo para o bem do
outro. Na raiz etimológica, essa doação é caracterizada pela oferta ou partilha
do pão. Doar, nessa acepção, é diferente de contribuir. Quem doa dá do que é
seu, e às vezes doa a si mesmo. Mais do que coisas, doa-se tempo, atenção,
escuta... Companheirismo.
Tenho levado meus filhos, pouco a pouco, para a
cozinha. Juntos, vamos dividindo tarefas e experiências. As perguntas são
muitas e o aprendizado é riquíssimo – para mim e para eles. Na hora de
comermos, o alimento tem mais gosto e traz energia não só para o corpo, mas
também para a alma.
Falando em alma, termino com os versos de Adélia
Prado, no seu poema “Casamento”:
“Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi
difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.”
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