Tenho sérios problemas com
cicatrizes. Não, nada físico. Tenho poucas cicatrizes pelo corpo e todas se
formaram sem maiores problemas. Uma na perna, de uma patetice dentro da cozinha
de casa. Uma no pé, de um tombo que levei de moto, numa experiência imprudente
com o namorado. Outra, bem recente, de uma pinta que retirei, a fim de evitar
problemas futuros. Tenho a marca das duas cesarianas que fiz, cuidadosamente
desenhada na segunda vez. E três pequenas e discretas em pontos diferentes do
abdômen, em consequência de um procedimento por videolaparoscopia para retirada
de vesícula.
Nos casos domésticos, senti a
agonia que me é peculiar, quando vejo ferimentos. Sinto-me mal, por menor que
seja o machucado (um corte no dedo, por causa de uma faca usada desatentamente,
me aflige bastante); se há sangue, prefiro cuidar sozinha e com grande esforço
emocional. Um dia, irei a um terapeuta resolver isso. Por enquanto, não há
transtornos maiores.
Nos casos cirúrgicos, basicamente
não se vê sangue. Passados os incômodos iniciais de efeitos da anestesia,
consigo tocar a vida bem. Com certa aflição, é claro. Quero meu corpo de volta
rapidamente! O problema maior, porém, é a retirada dos pontos. A necessidade de
que alguém toque (ou quase toque) aquele ferimento me deixa muito nervosa. Se
eu pudesse passar sem esse momento, seria imensamente grata à vida. Mas não dá.
Aliás, houve uma vez em que, meio inconscientemente, tentei: depois da retirada
da vesícula, “esqueci” por duas vezes o dia marcado para tirar os pontos.
Conclusão: quando finalmente arranjei coragem e fui ao consultório, o incômodo
e a aflição viraram dor de verdade, com direito a pequeno sangramento. Isso que
dá fugir dos problemas!
Pior do que tudo isso, porém, são
os outros tipos de cicatrizes que ganhamos pela vida afora. Aquelas que não são
vistas, mas que se sente. Vez por outra chego a lembrar-me delas, mas não posso
dizer que isso me cause sofrimento. Parece que não perdê-las por completo de
vista significa, para mim, ter algo para aprender. Sim, porque não
necessariamente aprendemos no momento em que sofremos. Às vezes, isso só vem
algum tempo depois. E acho que as cicatrizes ajudam nisso. Se não desaparecem
por completo (as física não desaparecem, não é mesmo?), vão ficando de
aparência cada vez mais fraca, quase como um sinal que sempre estivera ali. Mas
não esteve; foi criado em consequência de determinada situação e manter a mente
atenta a isso é importante para evitar aquele ferimento novamente, a despeito
de se ter outros, de maneiras diferentes.
Hoje, acho que, de certo modo,
isso se chama ressentimento. E não faz muito tempo que me descobri assim. Foi
uma triste surpresa! É duro saber que nossas chamadas características têm,
muitas vezes, cara de defeito, sim. E dar nome a ele dói. No entanto, é
necessário. Se nos conhecemos, a lida fica mais saudável. E crescemos melhor e
melhores.
Meu problema com minhas
cicatrizes é que não suporto tocá-las. Nem as do corpo nem as da alma. Até hoje
sinto nervoso ao tocar a cicatriz da perna, e me feri em casa há quase vinte
anos! Tudo bem, pode ser só uma neura. Talvez tenha de ir ao terapeuta antes do
que previa...
O que dizer de tocar aquelas
outras cicatrizes – as emocionais? Não, definitivamente, não gosto de situações
mal-resolvidas e, se para resolvê-las, for necessário “botar o dedo na ferida”,
vou colocar. EU. Ou seja, aqui, também, como em tudo na minha vida, quero
autonomia para decidir se vou ou não tocar naquela ferida, pois isso só pode se
dar na medida da minha resistência, que é grande, eu sei. Mas é limitada, como
a de qualquer ser humano.
Alguém me disse que sou uma
pessoa resiliente. Esta é uma das palavras da moda e não gosto muito de
modismos. Mas confesso que a definição que veio depois me convenceu de
imediato: “Você leva bordoada, mas se levanta e segue em frente.” É, acho que
sou isso mesmo.
Odeio ser injustiçada ou traída.
Mas também detesto o papel de vítima. Assim, meu esforço para não ficar
sofrendo um sofrimento (a ideia é essa mesma; o pleonasmo às vezes é melhor
recurso lingüístico que temos) é enorme. Sou capaz de perdoar quem me magoa.
Embora perdoar não seja esquecer... E sou capaz de conversar sobre a mágoa. Mas
só se houver sinceridade. Para ser manipulada, jamais.
Aceito minhas cicatrizes. Como
poderia ser diferente? Entretanto, quero eu mesma tomar conta delas. Ao meu
modo. E compartilhá-las com quem achar que devo. Se achar que vale a pena. Para
mim e para o outro.
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