segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Eternidade, fé e contemporaneidade

Nas aulas de 16, 17, 23 e 24/09 conversamos sobre eternidade, motivados pelas reflexões de Bauman e acabamos falando religião e fé. Embora no meio acadêmico, não foi possível para alguns deixar de falar sobre esse aspecto que lhe és caro.
Sem querer, nesse momento, dissertar sobre o assunto, deixo o texto que escrevi em fevereiro, um mês após a tragédia climática que atingiu nossa cidade e as demais da região serrana.


Hoje é dia 12 de fevereiro de 2011. Há um mês, uma chuva fortíssima, que caiu durante toda a véspera e a madrugada, encharcou a terra e derrubou morros inteiros com mata nativa, causando dezenas de deslizamentos sobre diferentes construções – casas, prédios, fábricas, lojas, escolas, ruas – e ceifando centenas de vidas.
Dos morros, desceram árvores, pedras imensas, quantidades enormes de terra. Os rios encheram e transbordaram em diversos bairros, causando enchentes que destruíram tudo o que havia dentro das construções, quando não elas mesmas.
Toda a população acordou naquela manhã um mês atrás numa cidade que não conhecia. Sem água, sem luz, sem telefone, sem internet, sem saber o que aconteceu ou o que fazer... Nos bairros que não haviam sido afetados, as pessoas estranhavam aquela situação e, aos poucos, conforme iam conseguindo, descobriam as notícias terríveis sobre a maior parte das demais localidades.
Nos bairros onde se tinha vivido os horrores daquela madrugada, as pessoas acordaram tristes e assustadas. Uns tentavam recolher o que havia sobrado de suas casas; outros tentavam resgatar corpos de familiares e amigos, torcendo para os encontrarem vivos; e muitos, muitos tentavam entender o que, de fato, tinha acontecido. Todos procuravam notícias sobre outros com medo de ouvir o pior e buscavam formas de dar notícias para aqueles que, fora da cidade, já sabiam que Nova Friburgo havia sofrido uma catástrofe climática.
Aos poucos, começamos a tomar consciência da dura e inacreditável realidade. Helicópteros sobrevoavam os céus todo o tempo, as sirenes de ambulâncias e bombeiros eram constantes; as autoridades chegaram à cidade, bem como as forças armadas. No centro, organizou-se o local de recebimento dos corpos para reconhecimento dos familiares... Parecia um estado de guerra – e era mesmo algo semelhante.
Na minha rua, nosso martírio começou com a morte de uma criança de seis anos, que tentamos resgatar, após o teto de sua casa ter caído e deixá-la presa. Percebemos que algo estava acontecendo, pois os bombeiros não puderam chegar aqui: nem naquela madrugada nem nas doze horas seguintes.
Logo depois à morte daquela menina, ouvimos o som das barreiras que caíram sobre a escola que com muito esforço e amor construímos ao longo de vinte anos... O som desconhecido e assustador naquela madrugada não foi capaz de nos preparar para os sentimentos de tristeza, decepção, impotência que vieram com a luz do dia, quando pudemos verificar os estragos daqueles desabamentos...
Ainda depois disso, chegou a notícia da morte de nossa querida aluna Maria Victória - uma bela, inteligente e encantadora menina de quatorze anos, que morreu dormindo, enquanto uma barreira caía sobre sua casa, soterrando-a e a seus familiares... Tudo era inacreditavelmente triste.
Hoje, passado um mês, ainda não é possível acreditar... Menos ainda quando vemos dias lindíssimos de verão, com céu azul, muito calor e pancadas de chuva refrescante à tarde...
Mas as marcas estão aí para nos lembrar – verdadeiras cicatrizes. Os morros, para onde quer que olhemos, estão rasgados... Como bem disse o compositor Benito de Paula, filho de Nova Friburgo: “Me ajudem a salvar a montanha que chora”.
Meus filhos de cinco e seis anos acompanharam quase tudo sobre a tragédia. Normalmente, eles assistem aos telejornais conosco e costumamos comentar ou explicar o que é apresentado. Naqueles primeiros dias, viveram uma vida diferente pela falta da energia elétrica, mas facilmente descobriram outras formas de brincar.
Depois, passaram alguns dias fora de casa (uma semana exatamente), abrigados conosco e com mais outros familiares na casa de um tio num apartamento. Em meio a toda a diferença daqueles dias, novamente descobriram modos de se divertir e ser feliz.
Pouco a pouco, fomos mostrando as cenas reais da destruição daquilo que lhes era mais próximo. Barreiras caídas em vários pontos, a escola danificada, a morte da amiguinha Maria. Nessa hora, era o momento para muitas perguntas, na tentativa de entender esse mundo que, de uma hora para outra, se modificara tão tragicamente.
Hoje, fomos à homenagem às vítimas da tragédia. Vestimos branco e nos reunimos a centenas de pessoas na principal praça da cidade. Meus filhos fizeram, junto com todos, um minuto de silêncio... mesmo sem compreender bem o que isso significa.
Ao sairmos de lá, veio a pergunta – inevitável e repetida. Há um mês, no primeiro dia diante desta situação, Augusto, o de cinco anos, havia feito uma enquete comigo, com o tio e com o pai, querendo saber por que Deus havia mandado aquela chuva forte.
Hoje, foi a vez de Miguel, o de seis anos, questionar, do alto da sua inocência, mas, ao mesmo tempo, de sua crítica inteligência, ainda não domesticada pelas respostas prontas e pelos dogmas. Ele quer saber, dizendo ainda não ter entendido, por que Deus permitira que tudo isso acontecesse. A resposta não é simples para uma criança, mas eu não queria mentir para meu filho. Então, lhe disse que Deus criou a natureza, mas que é ela quem cuida de si mesma, aproveitando para discursar sobre as consequências da ação do homem sobre ela. Mas, como disse acima, sua mente está aberta à reflexão e ele me perguntou como Deus pode ajudar em situações como essas.
Não, não tive coragem de dizer que é necessário orar com fé para ter livramento, pois não creio nisso assim dessa forma simplória. Tenho certeza de que dezenas pessoas de muita fé morreram em decorrência dessa tragédia. E não acredito que Deus separaria os de fé para serem salvos e mataria os de pouca fé. Eu não creio num Deus sádico assim.
Acredito que Deus é amor. Acredito que Ele concedeu o livre arbítrio ao ser humano, para que pudesse se relacionar e cuidar da natureza, desfrutando dela e descobrindo a melhor forma de lidar com sua imperfeição – a dele, ser humano, e a dela, natureza. Creio que estar com Ele – seja qual for o nome que lhe damos - significa buscar um caminho de Bem e disse isso aos meus filhos: Deus não escolheu que pessoas morressem para que outras decidissem agir diferente e salvassem e o que restou da cidade. Não, Deus se entristeceu profundamente como cada um de nós, pela natureza destruída e pelas vidas que se foram. E está ao nosso lado para renovar nossa fé – como diz a Bíblia, “(...) a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não veem.”
Espero que meus filhos possam crer que Deus é o criador e que ama toda sua criação. Que eles creiam que Deus está olhando para cada um de seus filhos, tocando seus corações, com sabedoria e discernimento para as experiências da vida. Que eles reconheçam a palavra de Deus – a Bíblia – como inspiração para a vida, na sua complexidade. Que eles busquem o refúgio da paz que Deus concede, para aprenderem a disseminá-la por todo lugar por onde forem. Que eles descubram sobre o amor de Deus, que consola, que renova e transforma, quando o ser humano é capaz de se abrir para tal. E que, diante das tristezas, decepções, tragédias, desilusões, perdas e, acima de tudo, diante da morte, que meus filhos sejam capazes de se colocar diante de Deus e pedir em oração: “Querido Pai, aumenta minha fé!”.

Márcia Lobosco

Um comentário:

  1. Belíssimo texto Márcia, eu estive em uma das situações que você cita, ainda estou sem palavras para comentar.
    abcs

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