Detesto mudar de casa. Deixar meu canto, começar tudo de novo. É tão difícil pra mim, que perco toda a minha capacidade de organização e minhas mudanças quase sempre são bagunçadas. Acho que faço um grande boicote, porque, de certa forma, não quero me mudar. Mas mudo, sempre que é preciso.
Já
mudei de casa várias vezes. Três mudanças, porém, deixaram cicatrizes em mim.
Uma ferida que dói sempre que é cutucada. Dor de separação não superada. Apesar
de toda a superação que efetivamente veio, trazendo uma vida boa e feliz. Mas
algo permaneceu triste para sempre. E tristeza dói.
Na
primeira vez eu era criança. Isso já tem quase quarenta anos. E eu sinto de
novo o coração apertar quando me lembro da notícia de mudança. Lembro as preocupações
que tive – “Será que nessa cidade tem correio?”. Sim, foi uma mudança drástica:
fomos morar em outro município, distante duas horas e meia da minha escola
amada, dos meus amigos queridos, da igreja que eu começara a frequentar. Como
eu conhecia bem o alento que proporcionado pelo carteiro chamando no portão
para entregar correspondência nova, pus nisto minha fé: tendo correio, vou
poder trocar muitas cartas! Era o poder da escrita que eu já conhecia, aos 10
anos de idade.
Adulta,
casada, com filhos, vinte e poucos anos depois dessa experiência, tive de,
novamente mudar de casa. Era na mesma cidade, pelo menos. Durante alguns anos,
voltava ao bairro antigo só para olhar para aquela casa – a casa amarela. Fora
construída no início do casamento, abrigou a família que se iniciava, foi
preenchida com alegrias de encontros, lágrimas de desencontros, chegadas e
partidas de filhos, desejos e muitos sonhos. Tinha encantamento de infância,
vivida plenamente em cada cômodo e nas brincadeiras sob o sol no quintal.
Poucos anos vivemos naquela casa. O suficiente, porém, para marcar as memórias
afetivas para sempre.
A
terceira mudança não é o que se entende por trocar de casa. Ninguém morava mais
nela, quando foi vendida. Mas efetivar a venda da casa pôs o ponto final da
história daquele lugar na minha vida. Aquela havia sido a casa construída por
meus pais com extremo esforço e erguida pouco anos depois de chegarmos à
cidade. Quando começamos a viver naquela residência, foi uma celebração
simbólica de que tudo havia dado certo, apesar dos percalços. Ali, as
esperanças se renovaram de que, sim, a escolha da mudança havia sido acertada.
Depois dali, houve ainda muitas dificuldades; a chuva de bênçãos, porém, foi
abundante. Mesmo o momento de saída de cada filha, os retornos e as
reviravoltas, foram vividos com intensas emoções e muita felicidade, ao final.
Até o dia em que não foi mais possível que houvesse ninguém na casa. Decisão
difícil; consequência das intempéries da vida – a casa, tão amada, virou
sinônimo de medo. Mas permaneceu ali, ainda por algum tempo, guardando algumas
das nossas coisas, e todas as nossas memórias sempre reavivadas em pequenas
visitas para buscar algo. Até o dia em que, felizmente (ah, esses paradoxos da
vida!...), apareceu um comprador e a casa foi vendida. Pra nunca mais.
Já
foram mudanças de casa. E sempre me atrapalho com isso. Dá preguiça, dá
desânimo, dá medo. Demoro a separar tudo, não consigo me organizar bem. Levo
meses na rearrumação. E, de repente, como se não tivesse havido nenhuma
dificuldade, a casa está com tudo em ordem e com a minha cara. E eu estou
feliz.
Mas...
há três cicatrizes. Eu as vejo. Estão ali para não me deixar esquecer. Lar é
construção diária. E tem mais a ver com pessoas e afetos do que com qualquer
outra coisa.
Márcia Lobosco
Nova Friburgo, 21 de março de 2021
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