“Minha jangada vai sair pro mar
Vou trabalhar, meu bem querer
Se Deus quiser quando eu voltar do mar
Um peixe bom eu vou trazer
Vou trabalhar, meu bem querer
Se Deus quiser quando eu voltar do mar
Um peixe bom eu vou trazer
Meus companheiros também vão voltar
E a Deus do céu vamos agradecer”
E a Deus do céu vamos agradecer”
Há alguns anos, assisti a uma palestra de Amyr Klink
no Festival de Inverno do Sesc. O palestrante, famoso por suas aventuras
solitárias no mar, viajando longas distâncias, disse – entre outras coisas
muitíssimo interessantes, ao relatar suas viagens e vivências – que a jangada é
uma embarcação genuinamente brasileira, de uma tecnologia incrível.
O
casco, confeccionado com madeira natural da região nordestina, é insubmersível;
as velas são totalmente adaptadas ao regime de ventos constantes do nordeste
brasileiro; os furos de vela permitem a regulagem fina do ângulo do mastro com
o rumo desejado. Trata-se de embarcação totalmente adaptada ao seu meio.
O fundo
resistente e plano é ideal para vencer as barreiras de recifes e as chegadas
diárias nas praias. A manutenção e os consertos que a embarcação requer são
procedimentos com técnicas simples. É barco barato, fácil de construir, manter
e consertar.
Tive a
oportunidade de ir ao Nordeste pela primeira vez em julho de 2013. Por tudo o
que dizem a respeito do litoral nordestino e pela propaganda que me fizeram do
lugar – Porto de Galinhas, em Pernambuco -, eu tinha certeza de que seria uma
delícia. Além, é claro, da possibilidade de dias de calor, o que muito me
agrada.
Mas foi
muito mais do que isso. Claro que o encontro familiar foi prazeroso, o
ambiente, agradável, e o descanso aconteceu, de fato.
O que me
motiva a escrever, porém, é a questão do lugar. Na verdade, não é apenas uma
motivação, mas a necessidade de colocar em palavras o turbilhão de emoções que
tomou conta de mim poucas horas depois que cheguei àquela região. É como se
tudo me (re)lembrasse uma origem, que é muito mais presente e marcante do que
eu mesma tinha consciência.
As cores
são mais alegres, como é mais alegre o povo e a música. É claro que estávamos
num belo hotel e só conhecemos destinos turísticos. As mazelas, os sofrimentos,
as agruras da vida não apareceram aos nossos olhos. Mas elas existem em todo
lugar e até mesmo aqui, na minha cidade, não as enxergo todo dia... Contudo,
elas existem.
Não estou
falando de uma aparência que cativou meus olhos e me causou deslumbramento.
Estou falando de essência, de algo que não conhecia e que, paradoxalmente, vivi
durante toda minha vida e faz parte das minhas entranhas. O sol, as peles
morenas, o sotaque cantado, o vocabulário regional, a energia – tenho isso em
mim, no meu corpo e na minha alma.
Comecei a
me dar conta disso, mais conscientemente, na noite do primeiro dia, quando, no
restaurante, li “feijão macassa”. Aquele que eu adoro e que mamãe chama exatamente
assim! Parece uma bobagem, mas foi altamente significativo. E daí não parou
mais: a tapioca no café da manhã, o cuscuz no cardápio do restaurante, as
cocadas na praia.
A cada
passeio, as cores, o som das vozes e das canções, a aparência das pessoas do
lugar faziam com que eu me sentisse como se fosse um deles... Como acho que
nunca me senti em Nova Friburgo...
Em 2012,
por conta dos estudos relativos ao centenário de nascimento de Luiz Gonzaga, eu
já começara a sentir algo assim, quando conheci melhor as letras desse artista,
ouvi com mais atenção suas músicas e li sobre sua vida. Naquele momento,
todavia, ainda não estava claro para mim do que se tratava. Com a viagem, as
sensações e sentimentos foram ganhando forma.
Acabamos de viver eleições
presidenciais e os votos dos estados da região Nordeste foram expressivos para
a vitória da presidenta Dilma, em sua reeleição. E, ao se tornar conhecido o
resultado do pleito, se iniciaram os discursos de ódio e discriminação contra
os nordestinos. Uma lástima!
Lembrei-me de quando eu
era criança e adolescente e estudava, nos bancos escolares, sobre essa região
do Brasil, sempre com um olhar etnocêntrico partindo do sul/sudeste. Como se
houvesse dois brasis. Como se as condições sociais e econômicas tornasse as
pessoas inferiores umas às outras em seu valor humano.
Também nesse período da
minha vida, recordo-me de assistir atitudes de preconceito contra meus pais.
Sutilmente, é claro. O brasileiro não é um povo cordial? O preconceito é,
então, velado. É um risinho ao ouvir o sotaque e reconhecê-lo originalmente
nordestino. É a ideia pronta de que as pessoas saíram de sua terra em condições
precárias. E – pior – que elas estão ocupando um lugar que não é o seu. Tudo
isso sempre reforçado por uma mídia televisiva que aposta o sucesso de seus
programas nos estereótipos e caricaturas.
Ao longo do tempo, com uma
exigência social de uma postura politicamente correta parecia que esse
preconceito havia se dissipado. Junte-se a isso, as mudanças econômico-sociais
significativas ocorridas nos últimos doze anos na região Nordeste.
Mas, não. O preconceito
continua entranhado. E os discursos discriminatórios estavam prontos para serem
proferidos tão logo os do sul se sentissem “ameaçados”, “prejudicados” pelos do
norte.
Pois bem: tudo isso que
tenho ouvido na última semana me fizeram orgulhar-me ainda mais de ter origens
nordestinas. Já escrevi num outro texto o quanto reconheço determinadas
características no povo nascido naquelas terras (“Sobre essência,
mudança e esperança”), a julgar pelas pessoas da minha família – tios, tias,
primos, primas e, em primeiro lugar, no meu pai e na minha mãe. Trata-se de uma
busca por liberdade num profundo “não” a ser tutelado por outro; de um esforço
por ter uma vida digna e confortável numa constante procura pelo melhor lugar; de
uma garra pela vida numa significativa luta para se manter de pé e não ser
perder dos seus.
Sei que cometo equívocos conceituais –
do ponto de vista intelectual – ao tentar caracterizar um povo, partindo de uma
análise empírica – e afetiva! . Mas, permito-me, já que não estou escrevendo
uma tese, mas apenas colocando em palavras minhas sensações, percepções,
sentimentos e pensamentos a respeito disso que me é tão caro (e que descubro
ser mais e mais, conforme o tempo – o meu tempo – passa...): a necessidade de
entender minhas origens. E elas estão lá, longe de mim geograficamente, e tão
perto, pois estão mesmo dentro de mim.
Parabéns pelo texto Márcia!
ResponderExcluirVocê esteve numa bela parte do Nordeste, dessas que são visitadas com frequência principalmente por pessoas do sul e Sudeste. É natural que se sinta a vontade, tem referencias muito forte de seus pais. Quando discriminam o nordeste se baseiam na seca, na fome, na miséria, como você sabe, isso se faz presente em todas as regiões. Esses verdadeiros paraísos do nordeste estão sendo cada vez mais aglomerados por pessoas de outras regiões e até países, pelo sol, pelas cores, pelas festas. Quando visitar a Paraíba, Caiçara, Sítio Braga, vai sentir cheiro de casa, de terra, de pedacinhos da vida e vai lembrar que foi embora exatamente como Fabiano (personagem de Vidas secas) se foi, fugindo da seca... Beijo carinhoso, farei com carinho esse percurso com você, entre outros.
Olá Márcia, como disse antes, eu não tenho origens nordestinas. Mas como eu queria ter...rsrs. O Ricardo (meu marido) tem. Seu avô era nordestino e veio parar em Friburgo porque era marinheiro. Nunca mais conseguiu voltar para lá. Ele formou família aqui e criou uma associação cultural aqui em NF. A associação cultural dos Andradas ainda existe até hj em Olaria. Lá tem forró, quadrilha, mineiro pau, folia de reis. Então eu sinto essas origens no Ricardo, através da paixão que ele carrega por tudo que seu avô o ensinou. O avô dele é falecido, mas ainda tem família lá no nordeste, a qual só temos contato pelo facebook. Mas um dia, se Deus quiser, iremos conhecer essas terras nordestinas, tão belas, tão ricas, tão quentes, tão brasileiras. E o preconceito...sinceramente não consigo nem comentar, pq foi realmente uma situação muito feia. Vi algumas postagens no face que me causaram vergonha alheia. Enfim...infelizmente no Brasil ainda existe muito preconceito e racismo escondidos e isso veio à tona nessas eleições.
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