domingo, 21 de março de 2021

Sobre erguer um lar

 

Detesto mudar de casa. Deixar meu canto, começar tudo de novo. É tão difícil pra mim, que perco toda a minha capacidade de organização e minhas mudanças quase sempre são bagunçadas. Acho que faço um grande boicote, porque, de certa forma, não quero me mudar. Mas mudo, sempre que é preciso.

Já mudei de casa várias vezes. Três mudanças, porém, deixaram cicatrizes em mim. Uma ferida que dói sempre que é cutucada. Dor de separação não superada. Apesar de toda a superação que efetivamente veio, trazendo uma vida boa e feliz. Mas algo permaneceu triste para sempre. E tristeza dói.

Na primeira vez eu era criança. Isso já tem quase quarenta anos. E eu sinto de novo o coração apertar quando me lembro da notícia de mudança. Lembro as preocupações que tive – “Será que nessa cidade tem correio?”. Sim, foi uma mudança drástica: fomos morar em outro município, distante duas horas e meia da minha escola amada, dos meus amigos queridos, da igreja que eu começara a frequentar. Como eu conhecia bem o alento que proporcionado pelo carteiro chamando no portão para entregar correspondência nova, pus nisto minha fé: tendo correio, vou poder trocar muitas cartas! Era o poder da escrita que eu já conhecia, aos 10 anos de idade.

Adulta, casada, com filhos, vinte e poucos anos depois dessa experiência, tive de, novamente mudar de casa. Era na mesma cidade, pelo menos. Durante alguns anos, voltava ao bairro antigo só para olhar para aquela casa – a casa amarela. Fora construída no início do casamento, abrigou a família que se iniciava, foi preenchida com alegrias de encontros, lágrimas de desencontros, chegadas e partidas de filhos, desejos e muitos sonhos. Tinha encantamento de infância, vivida plenamente em cada cômodo e nas brincadeiras sob o sol no quintal. Poucos anos vivemos naquela casa. O suficiente, porém, para marcar as memórias afetivas para sempre.

A terceira mudança não é o que se entende por trocar de casa. Ninguém morava mais nela, quando foi vendida. Mas efetivar a venda da casa pôs o ponto final da história daquele lugar na minha vida. Aquela havia sido a casa construída por meus pais com extremo esforço e erguida pouco anos depois de chegarmos à cidade. Quando começamos a viver naquela residência, foi uma celebração simbólica de que tudo havia dado certo, apesar dos percalços. Ali, as esperanças se renovaram de que, sim, a escolha da mudança havia sido acertada. Depois dali, houve ainda muitas dificuldades; a chuva de bênçãos, porém, foi abundante. Mesmo o momento de saída de cada filha, os retornos e as reviravoltas, foram vividos com intensas emoções e muita felicidade, ao final. Até o dia em que não foi mais possível que houvesse ninguém na casa. Decisão difícil; consequência das intempéries da vida – a casa, tão amada, virou sinônimo de medo. Mas permaneceu ali, ainda por algum tempo, guardando algumas das nossas coisas, e todas as nossas memórias sempre reavivadas em pequenas visitas para buscar algo. Até o dia em que, felizmente (ah, esses paradoxos da vida!...), apareceu um comprador e a casa foi vendida. Pra nunca mais.

Já foram mudanças de casa. E sempre me atrapalho com isso. Dá preguiça, dá desânimo, dá medo. Demoro a separar tudo, não consigo me organizar bem. Levo meses na rearrumação. E, de repente, como se não tivesse havido nenhuma dificuldade, a casa está com tudo em ordem e com a minha cara. E eu estou feliz.

Mas... há três cicatrizes. Eu as vejo. Estão ali para não me deixar esquecer. Lar é construção diária. E tem mais a ver com pessoas e afetos do que com qualquer outra coisa.

 

Márcia Lobosco

Nova Friburgo, 21 de março de 2021

Outono pandêmico (outra vez)

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